terça-feira, 27 de abril de 2010

TEXTO

Indicial é o CASARÃO!

Luizan Pinheiro


O Projeto Indicial Fotografia Paraense Contemporânea aberto no último dia 4 de abril traz ao público uma proposta de intervenção artístico-educativa, como assinala o folder de divulgação, em que a dimensão matérica do espaço é a condição determinante e o princípio gerador dos sentidos, deflagrados na relação das poéticas e intervenções com o espaço físico. A ativação dos sentidos no corpo do Projeto propõe inúmeras nuanças de declínio e ousadia, redução e intensidade, vazio e força, numa profusão de articulações operadas por estas noções. Evidenciaremos aqui em diversas direções tais nuanças, no sentido de ampliar os modos possíveis de perceber os efeitos das armadilhas estéticas contemporâneas.

Algumas questões permitem com que captemos com olhos novos a exposição, pois de fato, ela é, ante nossos olhos, um grande acontecimento curatorial, pelo menos até agora em Belém. Este caráter de novidade recai sobre a utilização da carcaça de um dos casarões do Boulevard Castilhos França onde se localiza o Centro Cultural Sesc Boulevard, responsável pela realização do Projeto. Há que se reconhecer que para os padrões do que se faz em termos de projetos curatoriais em Belém, Indicial se mostra ousado. O Projeto se valeu de uma estratégia diferenciada no uso do espaço. O aproveitamento dos elementos arquitetônicos do casarão e suas texturas, produzem um diálogo insólito com as fotografias, favorecem as intervenções dos grafites e nos remetem a fruições diversas de sentidos.

Três exemplos da relação entre o espaço e as poéticas nos chamaram atenção e colocaram algumas questões, definidas pela idéia de absorção e anulação que criam um outro lugar para Indicial. Um primeiro exemplo se dá em relação à proposta do artista Armando Queiroz. Na medida em que seus objetos instauram um estado de natureza são perdidos pelo olhar que os anulam ao mesmo tempo em que se fundem ao espaço arquitetural pela ordem da textura que o musgo e limo promovem. Semeadura postula um território de amalgamento com o corpo do casarão e tudo se veste de uma normalidade que o estado de natureza imputa.

Um segundo exemplo ocorre na intervenção de Bruno Cantuária e Ricardo Macedo que ao revisitarem as propostas de Hakim Bey embandeiram as grades das janelas internas do casarão, e a proposta é inviabilizada em sua condição de bandeira, pois as cores (preto e branco) dos trabalhos são absorvidas e anuladas pela textura do local. Hakim Bey é preso pelo próprio ato estético. E o mastro do navio pirata dos Hakim Beys locais, é derrubado pelo fogo cruzado da nau à deriva que é o casarão.

No terceiro exemplo, as intervenções do grafite de Adriana Chagas se vestem de um dos acontecimentos mais instigantes para o olhar intra-exposição. Drica, como é conhecida a artista, produz interferências de diversos níveis de tensão que promovem um enriquecimento para as próprias fotografias, como é o caso das imagens de borboletas que ela cria saídas da imagem fotográfica de Luiza Cavalcante; assim como a imagem da galinha e a árvore que promovem um contraponto insuspeitado sobre a poética fotográfica de Alexandre Sequeira. A mão-olho de Drica age de forma certeira nos diversos espaços em que interfere, vide o caso da imagem da mulher servindo chá-café na xícara próxima da pia real, aproveitando as texturas da parede, nos remetendo às pinturas parietais em que o artista-caçador aproveitava os veios das paredes das cavernas para criar a imagem do animal.

Mesmo com toda essa dinâmica criadora, o casarão se impõe e define o que de poético-estético é possível. Uma força intensiva se revela, pois tudo ali é acontecimento marcado pela condição de objeto total de que ele se veste agenciado pelas suas próprias vísceras. Carne poética sob o jugo do tempo. A força de natureza deteriorada do casarão devolve os trabalhos de Armando ao seu estado originário, e um esvaziamento se dá pela ordem da natureza. Inibe e instaura um estado de declínio na intervenção de Bruno e Ricardo, e fortalece e aprisiona os grafites de Drica. Temos, assim, na fusão que o casarão promove nestas três poéticas o que poderíamos chamar de poéticas da desaparição nas intersecções e fendas que o virtual fotográfico produz.

Os efeitos que a textura do casarão gera sobre as poéticas fotográficas, os grafites e as demais interferências, são engolidos pela dimensão do casarão e pela beleza sórdida de suas paredes. Se ali não tivesse nenhum trabalho artístico não faria a menor diferença em termos de sua possibilidade de fruição, pois o tempo se encarregou de criar uma materialidade explicitamente impressionante, que nos faz buscar os acontecimentos imemorias que ainda emergem de cada área do casarão. Quantos acontecimentos se escondem por trás dos acontecimentos-textura? Abre-se assim um mote para vasculharmos o bas-fond da história para além da história oficial aqui cantada em letras mortas. O casarão em si, sem as interferências da arte contemporânea, pode ser fruído independente, na medida em que ele se impõe como objeto estético autônomo, no mesmo momento em que engole as imagens que seu corpo recebe. E desse modo, é necessário assinalar a virtude dos curadores-organizadores em evitar o excesso de maquiagem tão comum nestas bandas. Pois, alguns trabalhos se vestem, mesmo nos riscos de desaparição, com a força do casarão, num diálogo intensivo com sua textura, como é o caso do trabalho de Irene Almeida em que a construção fotográfica expande-se numa fusão com o espaço real: articulação vibrátil e densa.

Numa outra trilha, pensar o casarão como condição de suporte da arte contemporânea é perder sua dimensão intensiva, histórica e sua densidade poética produzida pelos eventos naturais e outras tantas interferências humanas; no limite, é a arquitetura em pulsação com a arte e a fotografia contemporâneas. A idéia de suporte neste caso não se sustenta, pois a dimensão textural, a naturalidade do apodrecimento do casarão inviabiliza tal idéia; tudo acontece como numa totalidade, um objeto a se autonomizar e resvalar no que os românticos ansiavam como obra de arte total, todas as artes a integrar a expressão de uma época. É possível ver o casarão nesta ótica dada a importância de Indicial neste eixo reflexivo.
Tudo o que se investiu no casarão remete a uma definição que afirma essa totalidade do objeto, fusão e absorção de todos os elementos que ali se presentificam. Esse é um modo com que a experiência estética se efetua, mas não apenas esse, pois todo objeto ou experiência estética abre-se num campo de possibilidades de leituras possíveis que remetem até mesmo à destruição da própria condição do objeto, assim como da própria experiência estética numa espécie autofagia do signo.

Com isso podemos concluir que tudo o que se veste em novidade é da ordem da destruição no próprio ato estético, ato que produz de um certo modo uma espécie de mais-valia do signo como aponta Jean Baudrillard em seu Transparência do Mal: ensaios sobre fenômenos extremos, enfatizando a excessiva estetização postulada por meio de uma visão daquele conceito marxista: “tudo é dito, tudo se exprime, tudo toma força ou modo de signo. O sistema funciona não tanto pela mais-valia da mercadoria mas pela mais-valia do signo;” e assim é possível entrever essa dimensão de mais-valia sígnica constituindo-se no corpo próprio da Indicial como excesso sígnico, neste caso, na densidade do índice, a marcação semiótica que desfere e mantém a condição matérica do que o engendrou. Carnação implicada na possível marca que nos move a inúmeras direções a partir da configuração e construção sígnica deixada no lastro da matéria. Ou o excesso como estase no grito enfurecido de Baudrillard: “onde há estase, há metástase.” E Indicial é capturada mais uma vez pelo olho cego do presente.

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