a única vez em que fui expulso de sala – nunca havia
saído do rumo dos livros, e todos me mangavam, “litlle bullying” por certo, de
c...-de-ferro, o atual nerd ou geek – foi quando perguntei a um irmão marista,
o irmão Luís, por que Maria era mãe e virgem e a minha mãe só era mãe? ele me
pôs, gentilmente e me chamando por nome e sobrenome, para fora da aula de
catecismo; uau, quando estava à porta, humilhado, só taquicardia, ele disse que
fé era algo inquestionável! ou se tinha ou não se tinha! quando o senhor
compreender isso, senhor barata, volte! coisa típica para acontecer a quem não
sabia calar na hora de somente ouvir.
apenas acreditava que minha mãe era tão casta quanto
Maria. blasfêmia? não sei, e que as mães todas assim o são desde primaveras
eras. não seríamos tolos em pensar o contrário, até por que há o Círio,
procissão que louva magnificentemente uma delas. a maior, é bem certo, a santa,
a que sabia os percalços pelos quais passaria e veria seu filho ser crucificado
e mais tarde o teria em seu colo, homem morto. nossa! essa senhora de Nazaré é
mesmo merecedora de todos os círios.
mas retorno às anônimas mães, as que não foram agraciadas
pelas homenagens. as de todos os dias, as que não têm tamanhas loas e, talvez,
nunca as terão. aquelas que, ao nascermos, emagrecem nos primeiros anos e
tornam-se insones sempre (eu acho que as mães não dormem nunca, elas velam
nossa pequena existência) e as que não podem mais morrer, pois como dizia
Leda...”agora possuo um cisne”.
lembro-me de uma vez estar com minha família em casa de
dona tietinha, coisa a qual fazíamos, na minha infância, à beça. era uma casa
soturna, onde hoje, no largo de Nazaré, é uma clínica de acidentados. a casa comprida e cheia de cômodos, largo e
extenso corredor e em muitos ambientes, escura, com o pé direito altíssimo era
um mundo pra minha meninice. sentia-me em um livro de Poe ou de Mary Shelley.
dona tietinha era uma pessoa meiga de tudo, farta sua mesa, e cheia daquele
saber das mães paraenses de receber bem e com calor de mãe. ah, a gente subia
no muro da casa de dona tietinha e ficava vendo os filmes que passavam no
finado cine Iracema. nunca fomos pegos!
bem, devo me deter a uma história. eu era o próprio
detetive a vasculhar aquela casa minuciosamente: criados-mudos, compoteiras,
namoradeiras, cadeiras comadre, penicos, cristais, louças, pratos de parede,
toda essa mobília de vó era minha aventura naquele mundo sempre
ultrarromântico.
certa feita, era Círio de Nazaré, e eu não parava pra a
ele assistir, através de uma das três grandes janelas no frontispício da casa,
de onde todos viam e eram vistos. estava a me embrenhar por debaixo da mesa do
almoço, ou me esgueirando por detrás de algum móvel grande, tudo me era muito
grande aos oito anos, ok! eu realmente sumia de meus pais, apenas ouvia o
Círio, os fogos, as orações, os hinos, o murmúrio das pessoas na velha casa,
quem sabe vivas ou mortas?, mas não o via. Minha memória visual do Círio quase
não existe. Então, estava a abrir algum gavetão, desses que guardam saudades,
quando me deu um negócio estranho, senti um perfume desses leves de água de
flores, e alguém soprou em meus ouvidos.
foi, seguramente, o susto mais perto do terror que me
acometeu em vida. estava pelo menos a uns quatro cômodos e setores da casa da
primeira sala, completamente “home alone”, e alguém me soprava nos ouvidos?
pirei, empreendi uma corrida desesperançosa e sem chão rumo à primeira sala, a
que dá para a rua. Minha mãe se encontrava numa cadeira, eu a visei de longe,
quando tchibum, mergulhei em seu colo, ávido por fechar os olhos e pleno de
visagens.
fiquei mudo, abri os olhos e vi Nossa Senhora de Nazaré,
pulei pro colo de mamãe exatamente no momento em que Ela, a que permitiu a
minha expulsão de sala, pois havia questionado sua castidade (blasfêmia!),
levitava na berlinda diante de meus olhos cheios d’água do medo. então eu fui
me acomodando em minha mãe, com aquela outra mãe ali, meu lírio mimoso, a me
proteger dos fantasmas da casa, que eu, eu fui me recostando, ajustando minha coluna,
com aquele cafuné, as unhas de minha mãe eram lindas e faziam festinha como,
ah... adormeci.
de novo não vi o Círio, somente a vi, mas sonhei com
elas, havia já visto duas boas senhoras, matronas e maternas, e já esquecido
daquela voz estranha que tinha me segredado o quê mesmo(?) lá no quarto antigo?
essa lembrança reforma vários ateísmos meus e conforma uma nova visão da fé:
sim só quem não questiona pode ter fé de verdade, a minha é real, pois naquele
Círio, mesmo contrapondo um quase momento sobrenatural a outro que requereu
minha espiritualidade repleta de certezas, de conforto e de amor maternal, me
tornei uma pessoa a qual sabe que não são somente as coisas que não vemos
as verdadeiras, existe um ouvir o mundo,
olha só como minhas lembranças do Círio são mais auditivas, e nele se
aconchegar e se sentir seguro de tudo que vai muito mais além de nossa vã
incredulidade.
rodrigo
maroja barata