Na vazante, as varas
fincadas, em geral pelo próprio pescador, varas que ele mesmo fez, aparecem
quase inteiras. É o curral. No Marajó, uma palavra comum, num universo, no qual
animais e peixes são o alimento principal. O curral diz muito de uma cultura de
águas, como é a da grande ilha na foz do Amazonas. Uma cultura que ainda é, em
grande parte, da partilha, do gesto comunitário da divisão, da palavra
empenhada, do aprendizado de um ofício, de uma ocupação, de um trabalho baseado
na confiança que se estabelece entre um mestre e um discípulo. O mestre, no
caso, conhece cada estrela no céu, cada movimento da maré, cada cardume em
aproximação. Não só isso: ele também conduz sua embarcação, que pode ser uma
pequena canoa ou um barquinho maior. Assim sendo, o trabalho do pescador não é
só manual, como pensamos. Implica também numa sensibilidade para o movimento da
maré, para a direção do vento, para o sabor da água, um conhecimento aprendido
com a natureza. O curral é construído, sem dúvida, para dominar a natureza,
para fazê-la curvar-se aos imperativos de nossa sobrevivência. Mas, este
domínio é ainda o resultado de uma conversa, de um diálogo, de uma espécie de
compadrio, de pacto, por meio do qual, ambos, homem e natureza, podem ainda
conviver juntos.
Na imagem de Octavio
Cardoso, da série “Silêncio”, podemos acompanhar essa relação entre homem e
natureza no universo da pesca em quatro planos, atravessados por nuances de
azul. No primeiro, a vazante; não é qualquer água, mas a da vazante, que deixa
à mostra a lama, as pedras e o que ainda existe de vegetação. Neste primeiro
plano, o domínio da água, de uma corrente intensa e forte, que leva na direção
da baía, para longe da margem, o que constitui o perigo da vazante. No segundo,
um sinal de vida vegetal, como se fosse um conjunto de braços em súplica, dirigidos
ao céu, vida que teima em aprofundar suas raízes na lama. No terceiro,
avançando para o rio, para a baia, em direção às águas fundas, o curral, na sua
formação mais clássica, o corredor que, ao final, se abre numa espécie de
retângulo –prisão, no qual as varas fincadas são hermeticamente atadas umas às
outras, para impedir qualquer fuga. O quarto, ao fundo, a fímbria da mata,
mancha verde, nas diversas tonalidades de verde (quisera eu poder relembrar
aqui todas as nuances do verde, que Benedito Monteiro recriou em seu Verde vagomundo).
Mas,
talvez, o curral, o terceiro plano, seja aquilo que Barthes chamou de
“punctum”, encontro de vida e morte, de florescência e desvanecimento. Como o
azul que acompanha essa imagem e essa série. Azul que não é nada celestial,
nada consolador, nada metafísico, nada idealizador. Azul que Octavio diz
atravessado por um silêncio. Advertência que, entretanto, não pode nos impedir
de ouvir o ruído das mãos rudes, cheias de calos, daquele que ali fincou essas
varas e que depois voltará, para daí retirar o pão. Do ruído de seus pés, sujos
de lama, entrando na água, à frente de seus ajudantes, daqueles que um dia
deverão recriar seu ofício. À frente, altivo, como sabem ser os caboclos
marajoaras. A ausência da figura humana nesta imagem é menos a constatação da
ausência, do que o indício, alegórico, das vidas humanas
que estão em jogo nela.
Por Ernani Chaves: Doutor em Filosofia pela
Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Filosofia e
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
do Pará, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e
Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos na UFPA.
Um comentário:
Nada mais belo que as palavras dadivosas do Prof. Ernani em um dia Santo. <3 Parabéns pela paisagem e descricão densa do Marajó em maravilhoso fragmento. ;-) Ariana.
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