sexta-feira, 18 de abril de 2014

Octávio Cardoso por Ernani Chaves





Na vazante, as varas fincadas, em geral pelo próprio pescador, varas que ele mesmo fez, aparecem quase inteiras. É o curral. No Marajó, uma palavra comum, num universo, no qual animais e peixes são o alimento principal. O curral diz muito de uma cultura de águas, como é a da grande ilha na foz do Amazonas. Uma cultura que ainda é, em grande parte, da partilha, do gesto comunitário da divisão, da palavra empenhada, do aprendizado de um ofício, de uma ocupação, de um trabalho baseado na confiança que se estabelece entre um mestre e um discípulo. O mestre, no caso, conhece cada estrela no céu, cada movimento da maré, cada cardume em aproximação. Não só isso: ele também conduz sua embarcação, que pode ser uma pequena canoa ou um barquinho maior. Assim sendo, o trabalho do pescador não é só manual, como pensamos. Implica também numa sensibilidade para o movimento da maré, para a direção do vento, para o sabor da água, um conhecimento aprendido com a natureza. O curral é construído, sem dúvida, para dominar a natureza, para fazê-la curvar-se aos imperativos de nossa sobrevivência. Mas, este domínio é ainda o resultado de uma conversa, de um diálogo, de uma espécie de compadrio, de pacto, por meio do qual, ambos, homem e natureza, podem ainda conviver juntos. 

Na imagem de Octavio Cardoso, da série “Silêncio”, podemos acompanhar essa relação entre homem e natureza no universo da pesca em quatro planos, atravessados por nuances de azul. No primeiro, a vazante; não é qualquer água, mas a da vazante, que deixa à mostra a lama, as pedras e o que ainda existe de vegetação. Neste primeiro plano, o domínio da água, de uma corrente intensa e forte, que leva na direção da baía, para longe da margem, o que constitui o perigo da vazante. No segundo, um sinal de vida vegetal, como se fosse um conjunto de braços em súplica, dirigidos ao céu, vida que teima em aprofundar suas raízes na lama. No terceiro, avançando para o rio, para a baia, em direção às águas fundas, o curral, na sua formação mais clássica, o corredor que, ao final, se abre numa espécie de retângulo –prisão, no qual as varas fincadas são hermeticamente atadas umas às outras, para impedir qualquer fuga. O quarto, ao fundo, a fímbria da mata, mancha verde, nas diversas tonalidades de verde (quisera eu poder relembrar aqui todas as nuances do verde, que Benedito Monteiro recriou em seu Verde vagomundo).

Mas, talvez, o curral, o terceiro plano, seja aquilo que Barthes chamou de “punctum”, encontro de vida e morte, de florescência e desvanecimento. Como o azul que acompanha essa imagem e essa série. Azul que não é nada celestial, nada consolador, nada metafísico, nada idealizador. Azul que Octavio diz atravessado por um silêncio. Advertência que, entretanto, não pode nos impedir de ouvir o ruído das mãos rudes, cheias de calos, daquele que ali fincou essas varas e que depois voltará, para daí retirar o pão. Do ruído de seus pés, sujos de lama, entrando na água, à frente de seus ajudantes, daqueles que um dia deverão recriar seu ofício. À frente, altivo, como sabem ser os caboclos marajoaras. A ausência da figura humana nesta imagem é menos a constatação da ausência, do que o indício, alegórico, das vidas humanas que estão em jogo nela.




Por Ernani Chaves: Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Filosofia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos na UFPA.

Um comentário:

Unknown disse...

Nada mais belo que as palavras dadivosas do Prof. Ernani em um dia Santo. <3 Parabéns pela paisagem e descricão densa do Marajó em maravilhoso fragmento. ;-) Ariana.