domingo, 1 de abril de 2012

Entrevista: Lúcia Gomes


Lúcia Gomes era para ser a nossa entrevistada do mês março, mas por diversas situações essa publicação só está saindo agora, no dia da mentira, no dia 01 de abril. As imagens foram cedidas pela própria artista com a devida indexação e creditadas a Fundação Lúcia Gomes (em processo de parto pela própria, mais informações na entrevista abaixo). Cabe aqui algumas palavras sobre essa mulher que a anos atrás já ocupava o posto de uma das poucas artistas a fazer trabalhos de arte contemporânea em Belém, valendo-se de um viés estritamente social e político. As proposições de Lúcia Gomes atravessavam naquele período (e ainda hoje), temas e reflexões sobre territorialidade, política, direitos humanos e identidade de uma forma impactante e visceral. Tocavam nesses temas em proporção exata a carência de reflexão sobre eles. Hoje Lúcia não está mais morando em Belém, está em Sargans na Suíça. Podemos acompanhar sua produção pela sua página no Facebook, e recordar de obras participativas como 1945 – Beijo –Fim do Holocausto, trabalho realizado ao lado da Casa das Onze Janelas em Belém, onde muitos casais se beijaram ao mesmo tempo. Lembro de muitas pessoas aproveitando para dar uma puladinha de cerca. Bom, fiquem com a entrevista, esperamos que gostem! Quem quiser conferir mais um pouquinho do trabalho dela pode acessar o link.

Novas Medias!? Para início de conversa, gostaríamos que te apresentasses, fale um pouco sobre você.

Lúcia Gomes Agradeço a oportunidade de pensarmos juntos neste espaço democrático - Novas Medias! nessa coisa deliciosa que é a internet!!! Eu sou a Lucinha, alguém como tu, nem mais nem menos. Nasci em 1966 em Belém do Pará, sou filha de Aldo Silva (Ximango) e Edna Gomes (Papa-Chibé) Orgulho-me de ter sido batizada em Santarém - daí ser contra a divisão do Estado do Pará, trata-se de dividir minha família... Minhas paixões são a Amazônia, seres humanos, natureza, vida!!!
Lucia Gomes na casa dos pais, Belém/Pará/Amazônia, com seus irmãos em 1970.     
Foto Aldo Silva 1970
NM!? Como e onde começou teu envolvimento com Arte?

LG Creio que fui envolvida, e deixei-me envolver ao visitar o Museu do Povo em Pyongyang na Korea do Norte em 1989, entrei, e saí outra! mas a história é mais antiga, pois a parede da sala da casa de meus pais era uma "instalação", o quintal e a fachada da casa de Quatipuru outra... havia também na casa onde nasci, um dos quintais somente para queimar o lixo, na época Belém ainda não havia coleta, para as crianças era um local proibido... éramos 07 (sete) ao todo. Havia também um poço de água e éramos proibidos a partir das 18:00h de chegar perto dele! vivia no mundo dos encantados...

NM!? Sabemos que em teus trabalhos existe um forte sentimento político que amarra as proposições, fala um pouco a respeito disso.

LG Era também tempo de medos (na infância), muito pequena escutei cavalos galopando e tiros, perguntava minha mãe o que era, ela fazia - Psiu! isso não é para ti! Nasci no 2º ano do golpe Militar/Grande Capital Internacional no Brasil morava na rua Jerônimo Pimental, no outro Quarteirão era o Hospital Militar... Sou o resultado dessas vivências, contatos com diversas culturas, pois meu pai viajava para a Zona Franca de Manaus e trazia LPs do Pink Floyd, tecido da China, jogo de porcelana chinesa (na época sinônimo de qualidade) Também através das viagens de meu pai caixeiro-viajante, entrei em contato pela primeira vez com etnias indígenas da Amazônia. Já na 2ª infância, tinha vizinhos vindos do Japão e Alemanha, testemunhas vivas da 1ª e 2ª grande Guerra Mundial, o filho do vizinho alemão inclusive se chamava Adolph, na adolescência entrei na militância na época da reconstrução do Movimento Estudantil no Brasil, era o final da ditadura... O fato de ser artista mulher ampliou meus compromissos, nunca foi fácil realizar meus trabalhos... Alguns dividem o mundo entre mulheres e homens, eu me ponho entre aqueles que percebem no mundo explorados e exploradores. Sou proletária, isso me coloca no campo dos trabalhadores, das lutas por mais justiça social - Séra que faria outros trabalhos? ou teriam outros títulos se tivesse nascido nobre? podemos afirmar que a resposta seria sim com quase 100% de segurança. Pois somos basicamente resultados de nossas vivências sociais.
SUCURI Engolindo Corruptos e outors Bichos-papão!
Lucia Gomes 2012


NM!? Uma arte engajada pode o quê?

LG Artistas são cidadãos que também formam opniões, influenciam e são influenciados pela sociedade. Nunca esqueço que estudantes visitam museus, galerias, salões; lêem jornais, Blog, estão nas redes socias da internet etc. É para eles que crio tentando conectar meus trabalhos as lutas por direitos humanos. E sei que isso ecoa de alguma maneira... Por exemplo estudantes escrevem sobre meus trabalhos. Lembro-me de certa vez quando ia para o CIAM/FUNCAP em Ananindeua, encontrei pelo caminho uma pintura jogada no lixo, estava meio desbotada, resolvi pegar para iniciar o trabalho na Contenção, pois ali criávamos textos coletivos e trabalhávamos com argila. Apresentei o quadro para os cidadãos em formação e perguntei o que enxergavam. Alguns viam o nascer do sol, e outros o por do sol, não chegamos a um consenso pois a imagem estava bastante esmaecida. O tempo passou e uma noite teve rebelião, foram me buscar em casa para colaborar nas negociações, presenciei cenas desesperadoras (até hoje tenho pesadelos) Enfim tivemos que ocupar apressadamente o EREC/FUNCAP que ainda estava em construção, quando já amanhecendo um adolescente gritou da "nova cela" - Lucinha! Lucinhaaa! eu já seiiiii! eu já sei! Era o nascer do sol!!! Fiquei estática, olhei para o céu, sentei-me no chão, não me contive mais e comecei a chorar... tempo...
Das Coisas Humanas - Amai-vos
Lucia Gomes 2003/2008
NM!?  Por vezes em teus trabalhos, parece não haver – realmente – fronteira entre tua vida pessoal e teu universo artístico, isso já te trouxe algum tipo de problema?

LG Em janeiro comecei a trabalhar como faxineira, limpo garagem e banheiros dum posto de gasolina, gosto muito desse trabalho. Além de ser tranquilo, no máximo tenho que me debater com um sanitário entupido! com ele posso comprar minha comida e pagar meu transporte. O início foi difícil, os trapalhões! Meu irmão até falou que não daria conta! Fazia tudo lentamente, perco tempo com detalhes limpando um pontinho/mancha no espelho ou na parede. Fico realmente feliz quando consigo deixar "brilhando e cheiroso" mesmo com minhas trapalhadas! E de vez em quando quase quebro a lâmpada com a vassoura, passei pano úmido a menos de zero grau (congelou imediatamente! tive que ficar um tempão quebrando a fina camada de gelo que se formou, para que depois as pessoas não escorregassem) Perco a pá de lixo (já comprei 03!) esqueci um pano de chão na escada, coloco o cesto de lixo em posição errada! Rio de mim mesma, seria muito gozado se virasse um filme! (rs) Enfim vou aprendendo a viver e naturalmente criando, por exemplo vou para o trabalho de ônibus, daí resolvi fazer dele uma câmera-obscura. Neste percurso diário (trabalho de domingo a domingo) criei o projeto "Sonhos de uma Faxineira - Por mais segurança, saúde, justiça e educação!" Na Amazônia quero fazer o barco-câmera obscura, em outra cidade no bonde, trem, etc. Agora estou me empolgando para pedir licença e fazer no carro particular e casas "câmeras obscuras" numa ação rápida etc.
Minha cabeça corre e não tenho tempo de fazer tudo que crio. Hoje estou organizando as fichas técnicas dos trabalhos inéditos, se morro poderão ser executados pela Fundação Lúcia Gomes que tem entre seus objetivos reunir e preservar a produção de meus trabalhos. Se tive/tenho dificuldades para executar meus trabalhos, quero dizer que também recebi muito apoio das amigas, familiares, fãs, público, estudantes, voluntários indispensáveis! Gente que doou da farinha ao dinheiro, até rede de dormir. Agora mesmo estamos coletando balões (agradeço os estudantes do IESAM, a Diretoria e o professor e artista Acilon Baptista) e capas de travesseiro (agradeço os estudantes da UFPA, especialmente a Claudinha Cinthya Nascimento, Romário Alves e Lucas Gouveia) para realizar o trabalho "RESISTÊNCIA" entre outros em Belém do Pará.
Resistência
Lucia Gomes 2012
Nesses 17 anos também tive que suspender a realização de alguns trabalhos como: PIRAPAZ e Corpos Velados. Não fiquei satisfeita com o resultado de alguns e gostaria de refazê-los, ainda outros repetir, pelo fato de não terem o registro adequado como em POROROCA (Sanitário ou Santuário? (ou ainda Salão das Águas)) o trabalho em que transportei um barco pesqueiro para o lixão de Belém/Ananindeua na Amazônia, ali encontrei trabalhadores corajosos que se organizam em turnos, e podiam na época ganhar até mais de um salário mínimo... aprendi muito, muito, conversando no sol ou sentada na sombra do barco...
POROROCA
Lucia Gomes 2003
NM!? Religião e educação participam da cosmologia Lúcia Gomes?

LG Desde que meu filho nasceu morto não consigo mais acreditar em Deus, porém louvo sempre que aprecio a natureza. Ainda que racionalmente não creia, quando olho as montanhas, o lago, o rio, as belas luzes que o sol nos propicia, fico inebriada e consigo apenas agradecer. Esse sentimento de gratidão procuro generalizar nas minhas relações pessoais, que de alguma forma influencia os meus trabalhos tornado-os até poéticos apesar da gravidade dos temas. Sou feliz por estar nas lutas, creio que temos somente nós mesmos (humanos) para nos amarmos, cuidarmos, lutarmos por justiça, enfim nossos direitos - os Direitos Humanos!




BU

Lucia Gomes 2006

NM!?  Esse espaço é seu.
LG Creio que devemos nos orgulhar de nossas origens, por mais pobres que sejamos, e nos fazermos humildes nas alegrias e tristezas da vida. Apaixonarmo-nos uns pelos outros, também odiarmos e lutarmos contra nossas vaidades, invejas, ciúmes, corrupções! Humanos não se resumem em relações amorosas superficiais, temos que nos trabalhar diariamente, renovarmo-nos diante das novas situações, sermos nós mesmos, nos alegrando com as possibilidades transformadoras da vida, trabalhando também pela alegria coletiva. Adoro nosso tempo, creio ser mesmo o mais belo em detrimento dos fortes contrastes, pois hoje temos as tecnologias necessárias para se extinguir a miséria do planeta, na arte não é diferente hoje somos milhares produzindo e pensando - A produção é muito mais democrática, não nos submetemos aos dogmas acadêmicos, resgatamos a tradição da arte pública, o contato direto com o povo. Nos apropriamos do que esta ao nosso alcance! as descobertas e conquistas são diárias - é o nosso tempo! seremos conhecidos pelo fim da miséria no planeta - Humanos lutemos pelo direito à vida!
1964BR1985
Lucia Gomes 2008/2009
Chrisalys
Lucia Gomes 2003
Titel:  SosoLucia Gomes 2008
Diálogos em Marte
Lucia Gomes 2008
TOCTOC... folgen     dem Fluss
Lucia Gomes 2008/2009
Nem que L. Tenha 100  Anos!
Lucia Gomes 2007/2008
aBRe - POSTNETART pela abertura dos arquivos da ditadura 1964 a 1985 no BRasil
Lucia Gomes 2008
Co(m)ntradições
Lucia Gomes 2001/2003/2005

2 comentários:

Claudia disse...

Parabéns NM e Lucinha! Pena o mundo não saber voar como tu, amiga!
Claudia Nascimento

Anônimo disse...

Procurando trabalhos mais antigos de Lúcia Gomes chego na página de NM por acaso, e de novo. Não me canso de ler esta entrevista, mergulhar na potência dos pensamentos e sentimentos desta mulher, artista na Amazônia, e aplaudir o compromisso com o seu tempo e seu lugar.