Lúcia Gomes era para ser a nossa entrevistada do mês março, mas por diversas situações essa publicação só está saindo agora, no dia da mentira, no dia 01 de abril. As imagens foram cedidas pela própria artista com a devida indexação e creditadas a Fundação Lúcia Gomes (em processo de parto pela própria, mais informações na entrevista abaixo). Cabe aqui algumas
palavras sobre essa mulher que a anos atrás já ocupava o posto de uma das
poucas artistas a fazer trabalhos de arte contemporânea em Belém, valendo-se de
um viés estritamente social e político. As proposições de Lúcia Gomes atravessavam
naquele período (e ainda hoje), temas e reflexões sobre territorialidade,
política, direitos humanos e identidade de uma forma impactante e visceral.
Tocavam nesses temas em proporção exata a carência de reflexão sobre eles. Hoje
Lúcia não está mais morando em Belém, está em Sargans na Suíça. Podemos
acompanhar sua produção pela sua página no Facebook, e recordar de obras
participativas como 1945 – Beijo –Fim do Holocausto,
trabalho realizado ao lado da Casa das Onze Janelas em Belém, onde muitos casais se
beijaram ao mesmo tempo. Lembro de muitas pessoas aproveitando para dar uma
puladinha de cerca. Bom, fiquem com a entrevista, esperamos que gostem! Quem quiser conferir mais um pouquinho do trabalho dela pode acessar o link.
Novas Medias!? Para início de conversa, gostaríamos que te
apresentasses, fale um pouco sobre você.
Lúcia Gomes Agradeço a oportunidade de pensarmos juntos neste
espaço democrático - Novas Medias! nessa coisa deliciosa que é a internet!!! Eu
sou a Lucinha, alguém como tu, nem mais nem menos. Nasci em 1966 em Belém do
Pará, sou filha de Aldo Silva (Ximango) e Edna Gomes (Papa-Chibé) Orgulho-me de
ter sido batizada em Santarém - daí ser contra a divisão do Estado do Pará,
trata-se de dividir minha família... Minhas paixões são a Amazônia, seres
humanos, natureza, vida!!!
Lucia Gomes na casa dos pais, Belém/Pará/Amazônia, com seus irmãos em 1970. Foto Aldo Silva 1970 |
LG
Creio que fui envolvida, e deixei-me envolver ao visitar o Museu do Povo em
Pyongyang na Korea do Norte em 1989, entrei, e saí outra! mas a história é mais
antiga, pois a parede da sala da casa de meus pais era uma
"instalação", o quintal e a fachada da casa de Quatipuru outra...
havia também na casa onde nasci, um dos quintais somente para queimar o lixo,
na época Belém ainda não havia coleta, para as crianças era um local
proibido... éramos 07 (sete) ao todo. Havia também um poço de água e éramos
proibidos a partir das 18:00h de chegar perto dele! vivia no mundo dos
encantados...
NM!? Sabemos que em teus trabalhos existe um forte sentimento político que amarra as proposições, fala um pouco a respeito disso.
LG
Era também tempo de medos (na infância), muito pequena escutei cavalos
galopando e tiros, perguntava minha mãe o que era, ela fazia - Psiu! isso não é
para ti! Nasci no 2º ano do golpe Militar/Grande Capital Internacional no
Brasil morava na rua Jerônimo Pimental, no outro Quarteirão era o Hospital
Militar... Sou o resultado dessas vivências, contatos com diversas culturas,
pois meu pai viajava para a Zona Franca de Manaus e trazia LPs do Pink Floyd,
tecido da China, jogo de porcelana chinesa (na época sinônimo de qualidade)
Também através das viagens de meu pai caixeiro-viajante, entrei em contato pela
primeira vez com etnias indígenas da Amazônia. Já na 2ª infância, tinha
vizinhos vindos do Japão e Alemanha, testemunhas vivas da 1ª e 2ª grande Guerra
Mundial, o filho do vizinho alemão inclusive se chamava Adolph, na adolescência
entrei na militância na época da reconstrução do Movimento Estudantil no
Brasil, era o final da ditadura... O fato de ser artista mulher ampliou meus
compromissos, nunca foi fácil realizar meus trabalhos... Alguns dividem o mundo
entre mulheres e homens, eu me ponho entre aqueles que percebem no mundo
explorados e exploradores. Sou proletária, isso me coloca no campo dos
trabalhadores, das lutas por mais justiça social - Séra que faria outros
trabalhos? ou teriam outros títulos se tivesse nascido nobre? podemos afirmar
que a resposta seria sim com quase 100% de segurança. Pois somos basicamente
resultados de nossas vivências sociais.
SUCURI Engolindo Corruptos e outors Bichos-papão! Lucia Gomes 2012 |
NM!? Uma arte engajada pode o quê?
LG
Artistas são cidadãos que também formam opniões, influenciam e são
influenciados pela sociedade. Nunca esqueço que estudantes visitam museus,
galerias, salões; lêem jornais, Blog, estão nas redes socias da internet etc. É
para eles que crio tentando conectar meus trabalhos as lutas por direitos
humanos. E sei que isso ecoa de alguma maneira... Por exemplo estudantes
escrevem sobre meus trabalhos. Lembro-me de certa vez quando ia para o
CIAM/FUNCAP em Ananindeua, encontrei pelo caminho uma pintura jogada no lixo,
estava meio desbotada, resolvi pegar para iniciar o trabalho na Contenção, pois
ali criávamos textos coletivos e trabalhávamos com argila. Apresentei o quadro
para os cidadãos em formação e perguntei o que enxergavam. Alguns viam o nascer
do sol, e outros o por do sol, não chegamos a um consenso pois a imagem estava
bastante esmaecida. O tempo passou e uma noite teve rebelião, foram me buscar
em casa para colaborar nas negociações, presenciei cenas desesperadoras (até
hoje tenho pesadelos) Enfim tivemos que ocupar apressadamente o EREC/FUNCAP que
ainda estava em construção, quando já amanhecendo um adolescente gritou da
"nova cela" - Lucinha! Lucinhaaa! eu já seiiiii! eu já sei! Era o
nascer do sol!!! Fiquei estática, olhei para o céu, sentei-me no chão, não me
contive mais e comecei a chorar... tempo...
Das Coisas Humanas - Amai-vos Lucia Gomes 2003/2008 |
LG
Em janeiro comecei a trabalhar como faxineira, limpo garagem e banheiros dum
posto de gasolina, gosto muito desse trabalho. Além de ser tranquilo, no máximo
tenho que me debater com um sanitário entupido! com ele posso comprar minha
comida e pagar meu transporte. O início foi difícil, os trapalhões! Meu irmão até
falou que não daria conta! Fazia tudo lentamente, perco tempo com detalhes
limpando um pontinho/mancha no espelho ou na parede. Fico realmente feliz
quando consigo deixar "brilhando e cheiroso" mesmo com minhas
trapalhadas! E de vez em quando quase quebro a lâmpada com a vassoura, passei
pano úmido a menos de zero grau (congelou imediatamente! tive que ficar um
tempão quebrando a fina camada de gelo que se formou, para que depois as
pessoas não escorregassem) Perco a pá de lixo (já comprei 03!) esqueci um pano
de chão na escada, coloco o cesto de lixo em posição errada! Rio de mim mesma,
seria muito gozado se virasse um filme! (rs) Enfim vou aprendendo a viver e
naturalmente criando, por exemplo vou para o trabalho de ônibus, daí resolvi
fazer dele uma câmera-obscura. Neste percurso diário (trabalho de domingo a
domingo) criei o projeto "Sonhos de uma Faxineira - Por mais segurança,
saúde, justiça e educação!" Na Amazônia quero fazer o barco-câmera
obscura, em outra cidade no bonde, trem, etc. Agora estou me empolgando para
pedir licença e fazer no carro particular e casas "câmeras obscuras"
numa ação rápida etc.
Minha cabeça corre e não tenho tempo de fazer tudo que crio. Hoje estou
organizando as fichas técnicas dos trabalhos inéditos, se morro poderão ser
executados pela Fundação Lúcia Gomes que tem entre seus objetivos reunir e
preservar a produção de meus trabalhos. Se tive/tenho dificuldades para
executar meus trabalhos, quero dizer que também recebi muito apoio das amigas,
familiares, fãs, público, estudantes, voluntários indispensáveis! Gente que
doou da farinha ao dinheiro, até rede de dormir. Agora mesmo estamos coletando
balões (agradeço os estudantes do IESAM, a Diretoria e o professor e artista
Acilon Baptista) e capas de travesseiro (agradeço os estudantes da UFPA, especialmente
a Claudinha Cinthya Nascimento, Romário Alves e Lucas Gouveia) para realizar o
trabalho "RESISTÊNCIA" entre outros em Belém do Pará.
Resistência Lucia Gomes 2012 |
Nesses 17 anos também tive que suspender a realização de alguns trabalhos como:
PIRAPAZ e Corpos Velados. Não fiquei satisfeita com o resultado de alguns e
gostaria de refazê-los, ainda outros repetir, pelo fato de não terem o registro
adequado como em POROROCA (Sanitário ou Santuário? (ou ainda Salão das Águas))
o trabalho em que transportei um barco pesqueiro para o lixão de
Belém/Ananindeua na Amazônia, ali encontrei trabalhadores corajosos que se
organizam em turnos, e podiam na época ganhar até mais de um salário mínimo...
aprendi muito, muito, conversando no sol ou sentada na sombra do barco...
NM!?
Religião e educação participam da cosmologia Lúcia Gomes?POROROCA Lucia Gomes 2003 |
LG
Desde que meu filho nasceu morto não consigo mais acreditar em Deus, porém
louvo sempre que aprecio a natureza. Ainda que racionalmente não creia, quando
olho as montanhas, o lago, o rio, as belas luzes que o sol nos propicia, fico inebriada e consigo apenas agradecer. Esse sentimento de gratidão procuro generalizar
nas minhas relações pessoais, que de alguma forma influencia os meus trabalhos
tornado-os até poéticos apesar da gravidade dos temas. Sou feliz por estar nas
lutas, creio que temos somente nós mesmos (humanos) para nos amarmos,
cuidarmos, lutarmos por justiça, enfim nossos direitos - os Direitos Humanos!
BU
Lucia Gomes 2006
NM!?
Esse espaço é seu.
LG
Creio que devemos nos orgulhar de nossas origens, por mais pobres que sejamos,
e nos fazermos humildes nas alegrias e tristezas da vida. Apaixonarmo-nos uns
pelos outros, também odiarmos e lutarmos contra nossas vaidades, invejas,
ciúmes, corrupções! Humanos não se resumem em relações amorosas superficiais,
temos que nos trabalhar diariamente, renovarmo-nos diante das novas situações,
sermos nós mesmos, nos alegrando com as possibilidades transformadoras da vida,
trabalhando também pela alegria coletiva. Adoro nosso tempo, creio ser mesmo o
mais belo em detrimento dos fortes contrastes, pois hoje temos as tecnologias
necessárias para se extinguir a miséria do planeta, na arte não é diferente
hoje somos milhares produzindo e pensando - A produção é muito mais
democrática, não nos submetemos aos dogmas acadêmicos, resgatamos a tradição da
arte pública, o contato direto com o povo. Nos apropriamos do que esta ao nosso
alcance! as descobertas e conquistas são diárias - é o nosso tempo! seremos
conhecidos pelo fim da miséria no planeta - Humanos lutemos pelo direito à
vida!
1964BR1985 Lucia Gomes 2008/2009 |
Chrisalys Lucia Gomes 2003 |
Titel: SosoLucia Gomes 2008 |
Diálogos em Marte Lucia Gomes 2008 |
TOCTOC... folgen dem Fluss Lucia Gomes 2008/2009 |
Nem que L. Tenha 100 Anos! Lucia Gomes 2007/2008 |
aBRe - POSTNETART pela abertura dos arquivos da ditadura 1964 a 1985 no BRasil Lucia Gomes 2008 |
Co(m)ntradições Lucia Gomes 2001/2003/2005 |
2 comentários:
Parabéns NM e Lucinha! Pena o mundo não saber voar como tu, amiga!
Claudia Nascimento
Procurando trabalhos mais antigos de Lúcia Gomes chego na página de NM por acaso, e de novo. Não me canso de ler esta entrevista, mergulhar na potência dos pensamentos e sentimentos desta mulher, artista na Amazônia, e aplaudir o compromisso com o seu tempo e seu lugar.
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