domingo, 21 de fevereiro de 2010

Stewart Home: a perspectiva radical

“A arte não pode ser reformada, ela só pode ser abolida"

Começou, como não poderia deixar de ser, no punk rock. Uma sequência de bandas medíocres e a sua própria mediocridade como guitarrista fizeram Stewart Home abandonar a música. Um dia, olhando uma obra numa exposição, teve um “insight”: “Eu também poderia fazer isso”. “Isso”, no caso, não era a obra em si. A questão que o interessava era: o que é necessário para conseguir pendurar uma peça na parede de uma galeria?

Desde então, Stewart Home tem construído uma trajetória bastante única como “artista” e “antiartista”: exposições, livros de ficção na tradição da “pulp fiction” (“Red London”, “Defiant Pose”), não-ficção sobre o situacionismo, as vanguardas e a antiarte (“Assalto a Cultura”, publicado no Brasil, “Mind Invaders: A Reader In Psychic Warfare”, “Cultural Sabotage And Semiotic Terrorism”), plágios em geral e, principalmente, ações inusitadas e carregadas de críticas contra a arte, suas instituições e a relação de ambas com as ideologias.

“A arte não pode ser reformada, ela só pode ser abolida. Assim, a estratégia cultural progressista nesse período de transição deve ser tornar autônomo o negativo dentro da prática artística”, afirma Home na entrevista a seguir.

O termo “vanguarda” tem origem política. À luz de certos acontecimentos dos últimos anos (com as manifestações dos altermundialistas em Seattle, Praga, Gênova, o movimento contra a invasão do Iraque) e o estado atual do mundo artístico, quais podem ser as relações entre arte e política hoje?

Stewart Home: Sempre achei que “vanguarda” tinha uma origem militar antes de uma origem política e artística. Mas o sentido das palavras muda ao longo do tempo e, mesmo se há muito o que discordar de Adorno, seus avisos sobre o risco de se preocupar excessivamente com a etimologia são válidos.

Falando de arte como ideologia, e não em termos de objetos, ela parece estar ligada ao sensual -enquanto a política e a chamada “ciência política” servem ao capitalismo como representação do racional. Essa divisão arte/política ou sensual/racional é claramente desumanizadora e alienada. Um dos objetivos da ação revolucionária é conciliar o sensual e o racional. Em muito do discurso sobre arte, os artistas aparecem como uma representação abstrata daquilo com que os seres humanos deveriam ser. Não apenas os artistas, mas todos nós deveríamos estar realizando os diferentes aspectos -emocionais, físicos, intelectuais- da nossa espécie.

Exatamente como o capitalismo, do qual é uma parte e um microcosmo, a arte não vai desaparecer por livre e espontânea vontade. Aliás, o fim da arte parece se arrastar indefinidamente na forma de neo- e retro-vanguardas. A vanguarda emerge parcialmente de tradições de iconoclastia religiosa, e como consequência parece não ser nem capaz de viver o fim da arte em silêncio. Pelo contrário, as vanguardas parecem ficar mais estúpidas a cada dia, com todas as suas produções “neocríticas”. O bebê é jogado fora junto com a água do banho, já que no seu esforço para parecer crítica, a vanguarda e sua prole abandonam o sensual sem nem chegar ao racional.

Larry Shiner, no seu recente “The Invention of Art”, argumenta que a arte é uma invenção da sociedade européia do século 18. Quando li isso, lembrei-me imediatamente de “Art, an Enemy of the People”, de Roger Taylor, livro que me deixou bastante contente nos anos 80. Taylor foi o primeiro autor que encontrei cujos argumentos sobre arte não exalavam o cheiro de ovo podre da idéia de Deus. A retórica da Escola de Frankfurt sobre a função crítica e negativa da arte era obviamente idealismo burguês coberto de trapos marxistas. Se o capitalismo cria as condições materiais para o aparecimento da “arte”, é o idealismo alemão que lhe fornece a legitimação ideológica.

Partindo das mesmas fontes filosóficas, Marx concluiu que a atividade humana constitui a realidade por meio da sua práxis. A verdade é processo, o processo de auto-desenvolvimento ou, como Marx colocou, o indivíduo completo do comunismo maduro é um caçador de manhã, um pescador à tarde e um crítico à noite -sem ser nenhum dos três.

Como está acorrentada pela comodificação, a prática artística é uma deformação do desenrolar sensual do eu que será possível quando tivermos chegado à comunidade humana real. O objetivo do comunismo é superar a reificação da atividade humana em áreas desconectadas, como trabalho e lazer, o estético e o político. O comunismo deve salvar a estética do gueto da arte e colocá-la no centro da vida.

Uma das questões mais importantes da política radical hoje parece ser o espaço: a erosão do espaço público, a criação de espaços autônomos, a ocupação de terras, “squatting”. Grupos como o Reclaim the Streets! e os Space Hijackers vêm à mente. Como você relacionaria essas questões à preocupação dos situacionistas com o espaço?

Home: Exceto num nível estritamente espetacular, não vejo muita relação entre os situacionistas e o Reclaim the Streets! Um dos problemas de críticas recentes da vanguarda dentro das quais os situacionistas foram parcialmente subsumidos é a maneira como a “antiarte” é concebida como privilegiando o espaço ao tempo. A consequência disso é que não há muito interesse em examinar a vanguarda teleologicamente. Considero errado concentrar-se no espaço em detrimento do tempo, e vice-versa; mas já que há tanta ênfase na relação espaço-vanguarda, talvez seja útil corrigir esse desequilíbrio dando mais importância ao tempo.

O papel do artista e seu duplo, o “antiartista”, alterou-se sensivelmente ao longo do último século, devido tanto à transição do paradigma moderno ao pós-moderno quanto ao que poderíamos chamar de “efervescência” da tecnologia. Enquanto não seria errado dizer que o século 20 viu a introdução de novas tecnologias de comunicação, não podemos esquecer que o mesmo pode ser dito do século 19 -que pariu a estrada-de-ferro e o telégrafo.

Fala-se muito ultimamente sobre a expansão global de indústrias culturais, e nunca é demais enfatizar que esse fenômeno só pode ser entendido dentro da lógica do capitalismo. Também gostaria de sugerir que o stalinismo e o maoísmo impuseram o capitalismo ao que até então haviam sido sociedades camponesas, e assim a principal característica do século 20 foi a passagem de uma dominação formal à real dominação do capital em escala global.

Como resultado, a produção industrial se moveu para as zonas periféricas do capitalismo, e algumas das indústrias mais avançadas podem ser encontradas hoje em países antes tidos como “atrasados”, da mesma maneira como regiões antes pesadamente industrializadas -como o Meio-oeste norte-americano ou as Midlands na Inglaterra- tornaram-se cinturões de ferrugem. Tudo isso tem um impacto imenso na produção da arte.

Algumas das nações industriais em declínio transformaram a produção cultural e os negócios imobiliários em importantíssimos geradores de riqueza. Assim como é global, a indústria cultural também é altamente localizada -centralizada em lugares como Londres e Nova York. Além disso, a produção cultural é diretamente relacionada ao aburguesamento daquelas que costumavam ser áreas pobres nessas cidades, e o aumento meteórico do preço dos imóveis nessas áreas tem destruído muito da sua personalidade, justamente o que na origem as tornava atrativas às vanguardas (entre os burgueses que se mudavam para lá).

Acho que esse é o contexto histórico daquilo que tanto os situacionistas quanto o Reclaim the Streets! tentaram fazer com o espaço público urbano. Por outro lado, os primeiros eram obcecados com uma constante reconstrução da ponte entre compreensões teóricas desse tipo e a prática (fosse da psicogeografia ou dos tumultos de rua), enquanto o Reclaim the Streets! fracassou em realizar seu potencial tático e estratégico porque era excessivamente obcecado com a idéia de ação direta.

Qual é o legado dos situacionistas? Eles ainda são relevantes taticamente (escândalo, reversão etc.)? Eles ainda estão vivos teoricamente ou o seu pensamento foi recuperado?

Home: Na melhor das hipóteses, o que os situacionistas fizeram foi reformular posições clássicas do comunismo de esquerda como poesia. Por exemplo, em “Sobre a Miséria da Vida Estudantil” (manifesto situacionista): “Quanto aos vários grupelhos anarquistas, eles não possuem nada, exceto uma patética e ideológica fé neste rótulo. Eles justificam todo tipo de auto-contradição em termos liberais: liberdade de expressão, de pensamento, e tralhas deste tipo. Como eles toleram uns aos outros, tolerariam qualquer coisa”. Essas frases estão apenas na tradução inglesa de Chris Gray, e não no documento original.

O problema dos situacionistas é que eles são continuamente recuperados pelos anarquistas, que nunca encontraram o comunismo de esquerda em toda a sua originalidade, nem nunca entenderam a natureza de seu rompimento com a Terceira Internacional. Os situacionistas servem de entrada em debates que são de relevância permanente, mas o movimento comunista é bem mais amplo do que isso. Acho que há muita razão para se fazer uma leitura atenta dos trabalhos de Asger Jorn e Chris Gray, mas isso não pode ser feito às custas de negligenciar Marx ou o trabalho prático.

« Bricolage », « détournement », « copyleft », software livre… Estes são elementos de uma discussão que começou na arte e hoje se espalha por outros campos?

Home: O “détournement” dá um toque político polêmico à noção de “bricolage”. O texto pré-situacionista clássico nessa área é o ensaio “Métodos de ‘Détournement’”, de Debord e Wolman, de 1956. Um filme como “What”s Up, Tiger Lily?” mostra desrespeito completo por um artefato cultural existente e o usa para fazer um trabalho novo: Woody Allen toma um filme de espionagem japonês e o transforma numa história sobre o roubo de uma receita secreta de salada de ovo.

Isso é feito principalmente por meio da dublagem, se bem que algumas cenas com Allen e o Lovin’ Spoonful (grupo pop americano) foram incluídas para fazer o produto mais vendável para jovens americanos dos anos 60. “What’s Up, Tiger Lily?” está mais próximo da noção de “détournement” bem-sucedido de Debord e Wolman que os experimentos cinematográficos de um ex-situacionista como René Vienet.

No seu “Pode a Dialética Quebrar Tijolos?”, um filme de kung fu de Hong Kong dos anos 70 foi redublado para dar um ângulo revolucionário à história. No entanto, Debord e Wolman teorizaram que as formas mais efetivas de “détournement” seriam aquelas que demonstrassem desprezo por todas os modos existentes de racionalidade e cultura, ao passo que aquelas que simplesmente invertiam sentidos preexistentes -como no caso de Vienet, que pega uma trama clássica do cinema de Hong Kong da época (o conflito étnico entre Manchus e Mings) e a substitui por um conflito de classe entre proletários e burocratas- são consideradas fracas. Com base na teoria de Debord e Wolman,What’s Up, Tiger Lily?” deveria ser melhor que “Pode a Dialética Quebrar Tijolos”. Na pratica, eu prefiro o filme de Vienet.

A respeito disso, há um argumento bastante unilateral que eu encontro com frequência -que a prática da vanguarda do início do século 20 teria sido normalizada no interior da arte contemporânea. É verdade, mas apenas até certo ponto, porque, enquanto a técnica da “bricolage” e o tratamento da história da arte inteira como fonte de material para a produção de novos trabalhos foram normalizados, a crítica à instituição da arte que a acompanhava foi jogada pela janela.

Aqui eu me refiro, claro, ao trabalho de Peter Burger, assim como ao envolvimento dos dadaístas de Berlim e da Internacional Situacionista com a esquerda comunista. A vanguarda pretendia integrar arte e vida, e o projeto falhou exatamente porque nem os dadaístas, nem os surrealistas, entenderam direito que a arte ganha sua aparência de autonomia ideológica por meio da sua comodificação.

Agradecimentos à Serven Vieira pelo envio da matéria.

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