sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Todo horizonte obriga a nada! por Luizan Pinheiro

Todo horizonte obriga a nada!

Luizan Pinheiro1

olhe

Você tem visto um horizonte ultimamente?

Vá ver um horizonte. meça-o de onde você está e faça-nos saber o comprimento

Yoko Ono, Olhe, 1966.

Horizontes num quarto-sala-galeria fechada são mentais. Persianas fechadas e intocáveis de falsas paisagens são vazias. Olhos morrem em ocasos mudos. E a paisagem aqui dentro não quer dizer nada. Obrigações do Horizonte II de Bruno Vieira investe-se de diversos estados de nada. As persianas são objetos dúcteis forjados numa dualidade que aspira ao silêncio. Emudecem-se na verticalidade limpa da parede e são investidas de uma nadificação tonta.

A suposição de que a impressão da imagem sobre a pele das persianas projetam o espectador na busca de uma possível paisagem que habita lá fora, como quer o artista, torna-se um artifício redundante: decora a parede muda e ao mesmo tempo inibe a viagem para fora. Sendo que tudo ali é fechamento de possibilidade e não-ultrapassamento. Todo o corpo decorativo do qual o artifício se intensifica diminui a intensidade dos sentidos. A superfície é chapada e a imagem projetada pela impressão fotográfica sobre as tiras das persianas produzem a visibilidade de um horizonte que não se obriga a nada. Portanto, anula a força do pensamento ao mínimo da imagem: sua superficialidade de artifício decorativo. E mais uma vez o fechado torna-se nada.

O problema se agrava quando a instalação expositiva é abrigada numa sala fechada num prédio denominado Casa das 11 Janelas onde não há persianas e a paisagem vista da Casa, seu entorno, é uma das mais belas da cidade de Belém, quiçá da Amazônia. O que provoca a anulação total das persianas de Bruno naquilo de que elas querem ser: ambigüidade e ironia na visada de Fernando Cocchiarale: “Ambigüidade e ironia permeiam esse trabalho que consiste na impressão fotográfica de uma montanha sobre uma persiana azul.”2 Não há ambiguidade pois o artifício é maior que sua intencionalidade irônica possível e serve apenas como objeto decorativo armado no seu próprio falso, isto é, as persianas são intocáveis. Não abrem e fecham.

Traduzindo para o inócuo e o vazio o sentido que caberia na ambigüidade como princípio que realiza o jogo mental de um duplo percebido. E Cocchiarale insiste na ambigüidade, mas às avessas, pois o imaginário é o mote:

“Ao graduá-la ou erguê-la (ainda que de modo imaginário), desfazemos a cena apresentada por meio das linhas formadas pelas barras que formam o suporte. Seu elemento estruturante tradicional é, no caso, a razão de seu desmanche”.3

Esta afirmação reitera a idéia de nada. A razão de seu desmanche amplia sua inocuidade desde uma “Vista inevitável”(2008-2010), título da série do artista. Instala-se a perda total de interesse do espectador na medida em que só é possível captar a ironia se o trabalho não se assemelhasse a qualquer outra persiana encontrada nas casas de decoração pelo comércio afora. Engodo do gesto. Noutra via poderíamos até pensar que o ambíguo e a ironia do trabalho é querer ser persianas decorativas e não conseguem. Impotência do gesto. Pelo menos as decorativas são tocadas. E fica-se no meio da confusão conceitual na veia contemporânea do artista e na suspeita teórica que Renata Wilner impinge:

“Ao apropriar-se da temática da paisagem, Vieira desestabiliza o mundo cartesianamente ordenado, desconstruindo suas coordenadas: o eixo vertical desaba; o conforto das verdades ilusórias é erodido pela impossibilidade de um espaço perspectivado, euclidiano, imóvel, da herança renascentista, face à fugacidade do tempo e à espacialidade aberta, dispersa e expansiva das redes virtuais na contemporaneidade.”4

Suponhamos com Wilner na possibilidade de que as persianas-obras de Bruno de fato desconstroem o mundo cartesiano na direção do que supõe uma persiana qualquer, esta, objeto comum e não obra de eixo vertical. Erige-se aqui mais uma possibilidade do ambíguo, mas como princípio a asseverar sua culpa ao morder o próprio rabo, pois o mundo de cartesius é puro delírio. Ou para sermos mais coerentes, pura ilusão. Do que se tratariam as verdades ilusórias senão na própria proposta do artista ou da teórica que investe numa crença da necessidade de desconstrução do mundo cartesiano que não habita ali. Insuficiência do conceito. Como também não há erosão porque não há a suposição de um espaço euclidiano perspectivado, imóvel, da herança renascentista no próprio trabalho, mas apenas na idéia suposta por Wilner.

E ainda poderíamos indagar acerca da pretensa conexão da fugacidade do tempo e da espacialidade aberta, dispersa e expansiva das redes virtuais na contemporaneidade que sequer são aludidas na proposta em questão tal como a erosão do espaço euclidiano citado. Parece-nos aqui forçação de barra para se enxergar uma suposta densidade conceitual nas obras apenas para induzir o espectador a uma direção mais erudita e até douta. O cartesianismo não se presentifica neste caso; o jogo visual vale pela sua pura exterioridade decorativa ensimesmada de vazio. E o espaço euclidiano não é captado porque não há a elaboração matemática e geométrica de que a superfície investe do que o olhar se aprofunda e desloca numa intencionalidade renascentista. Tudo em Horizontes é superfície chapada. Não há vazamento do olhar como se pode observar na Escola de Atenas de Rafael ou no deslocamento para o fundo infinito da Monalisa de Leonardo; ou mesmo fuga no através do corpo do Cristo Morto de Mantegna. E se as paredes da galeria falassem substituíam a fala por um grito: “cortem-me a carne para que os outros vejam lá fora o que de fato é a paisagem deste norte!” numa alusão ao grito de Artaud:5

Talvez a proposta fosse mais coerente afirmando a condição discursiva pela ótica de um design de interior criando um rigor e uma elaboração menos cínica. Ou mesmo afirmando um nada formal, pois que o nada é a condição última do trabalho do artista erodido em si mesmo. Ou tomando uma outra trilha orientalizante, dada a oferta filosófica e corpórea do Hagakure:

“Nossos corpos ganham vida a partir do nada. Existir onde o nada existe é o que significa a frase ‘a forma é o vazio’. O fato de tudo existir a partir do nada é o que significa ‘vazio é a forma’. Deve-se levar em conta que essas coisas são inseparáveis”.6

Desse modo é possível que a passagem através das persianas-obras fosse menos dolorosa, no sentido de os olhos imantarem-se de um nada perfeito. Pois que manifestava a existência das obras a partir do nada em função do vazio da forma. E no mesmo registro intensificava o vazio pela forma como condição de existência. E aí dava-se a inseparabilidade das densidades corpóreas da obra a revelar o mundo desde o cubo da galeria sem as premissas de uma ilusória verdade.

Mas mesmo que não se obtenha uma inventiva visualidade a procurar uma sustentação reflexiva nas vias do contemporâneo; ou uma possível paisagem mental que leve o espectador a um conforto afetivo ou até a uma paz interior, a força do trabalho de Bruno Vieira está na densidade de não ser NADA.

Barcarena/Pa, 20/08/2010.


1 Professor da Faculdade de Artes Visuais – FAV do Instituto de Ciências da Arte – ICA da UFPA, e do
 Programa de Pós-Gaduação em Artes- PPGARTES do mesmo Instituto. Doutor em Artes Visuais (História
 e Crítica de Arte) pela UFRJ.
3 Idem.
4 Idem.
5 O grito de Artaud: “porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão In:
 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3.. Rio de Janeiro:
 Editora 34, 1996. p. 9/10.
6 In: HAGAKURE: O Código do Samurai (1750) . Citado em Ghost Dog (1999) de Jim Jarmusch.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olha só o que eu achei! Na verdade me mandaram o email e vi a crítica do Bruno Cantuária sobre a exposição e a matéria na revista. POdia ter esculachado mais um pouco.
http://www.istoe.com.br/reportagens/99179_QUADROS+POETICOS