terça-feira, 31 de agosto de 2010

Minimo/Múltiplo/Incomum

“tesouros perdidos nas areias de
desertos antigos”1
Luizan Pinheiro 2

os tesouros de Mínimo/Múltiplo/Incomum de Keyla Sobral estão enterrados nos desertos antigos de cada um de nós. têm a virtude de deixar.nos atônitos. aflitos. afáveis. isto em função de que um ar de delicadeza e tensão percorre o ambiente quando do envolvimento com os micro.acontecimentos da artista. de um lado. delicadeza da ordem de um lugar fluido que se move numa espécie de desprendimento dos sentidos da obra a tomar o espaço.galeria. fluidez movente conduzida pelas mãos de Keyla. suas mãos estão ali. presas na matéria.traço.palavra.vazio a gritar os rumores de suas micro.histórias na direção dos viajantes. presas dos desertos. de outro. a tensão. expressada numa sua fisicidade acometendo os corpos dos viajantes pelos desertos antigos de suas existências. na busca dos tesouros escondidos nas areias. um nível de tensão que os corpos sofrem no tempo que os atravessam. e que aqui. é tão somente um caminho perceptivo reinventado desde os percursos poético.visuais da artista. os micro.mundos de Keyla habitam memórias reeditadas de seu universo pessoal para o encontro com os viajantes que se vêem e se reinventam nas fendas das matérias.traços.palavras.vazios que os tomam. há uma fração de vertigem nesses desertos. a operar o desmonte de uma lógica pré.dada dos corpos. lógica de uma possível pulsão de gestos e vivências. que ora mexem com as entranhas. construindo gramáticas outras. erguendo mundos novos de beleza e afago. ora emudecem-se num vazio especular. silencioso. sob um céu de acinzentado frescor. tudo bem regido e inscrito em tábuas de leis envelhecidas. assim a caravana passa e nenhum cão ladra no dia. na tarde. na noite. e os gatos viram pardais. e é só pela insistência em desenterrar os tesouros. pois enterrados eles estão mas não desaparecidos. é que se chega perto de suas intensidades e aflições. e ao encontrá.las. tudo o que é preciso é dos estados afetivos a constituirem-se em outro tanto de vida. vida a ativar mundos. mundos a devolver-nos aos territórios mais íntimos dos encontros com nossos próprios desertos. desertos onde poderemos desenterrar todos os tesouros de possíveis.novos acontecimentos. acontecimentos revestidos de paixão. medo. mistério. silêncio. alegria. dor. numa imensidão de tantos tesouros.

de como os tesouros são afetos
do diálogo aqui travado com os micro-mundos de Keyla Sobral. o aparecimento de uma narrativa erige-se das areias escaldantes das existências cotidianas e nos chegam pelas mãos da artista nos registros dos tesouros encontrados de que nos referimos acima. a nos envolver de força para atravessar mais desertos quanto possíveis. de atirar-nos em direções várias para restituir na escritura o que o afeto nos imprime. e do escoamento desses des.ditos. abrir pequenos cortes numa espécie de cirurgia dos sentidos a que o corpo e a mente predispõem. são esses acontecimentos-obras que deflagram histórias afetivas que aqui se inventam. se constroem. e revelam mundos.


ela disse suba. 
e como saber do tempo dos acontecimentos se tudo o que pairava era a insuportabilidade da dúvida ao primeiro passo. ao primeiro degrau. eram 9. e mesmo sendo uma possibilidade ímpar. não se saberia dizer do que era possível na travessia. na subida. e ali diante dos mistérios dos degraus. deu.se a partida. e o lugar do qual se buscava alcançar. habitar. tornava-se o objetivo fundamental. mas como saber de uma virtual chegada se a cada percurso.degrau o que se sentia era a imprevisível onda de silêncios processados a cada nova configuração. a subida se mostrava leve. mas não anunciava uma qualquer concretude de se a.tingir as metas afetivas de que supostos viajantes são capazes de divisar. o ar investia-se de delírio quando se olhava do alto da escada e avistava.se as luzes do outro lado da cidade. mas as luzes que habitavam o outro lado eram difusas. e davam apenas uma vaga idéia de que degraus são acontecimentos pesados em qualquer subida. e para qualquer mundo. mas os degraus também impõem força. pois há sempre a possibilidade da queda. mas é exatamente essa possibilidade que instala a força.


métodos de fuga. 
são aberturas para novos campos. respiradouros a remeter ao aberto do mundo. opostos aos degraus que afirmam o peso. condicionam a um afastar-se da tensão e do sufocamento impostos pelos trajetos. abre-se assim pelo método a condição da fuga necessária. o escape no através dos trechos íngremes. e a fuga dá-se na tripartição porta. janela. escada. agenciados na invenção.captação desses estados.Keyla. da porta. do que se diz a saída talvez a mais nobre. mas nobreza na saída é só um tiro no vazio. talvez seja melhor fechá.la atrás de si sem sequer revolver o olhar para os gestos que ficaram. porta afora quando se diz fuga. fuga quando todo o percurso se fecha com a selvageria de um não-mais. o que fica é a sonoridade explosiva do estampido. ou o silêncio aos rumores do afeto. janela. do que diz uma abertura no espaço o atirar-se logo. às vezes sem o corpo. só as flutuações desmedidas dos olhos na paisagem. antes. os olhos a discorrer sobre o fora. o aberto. o imenso. mas o que se quer o imenso é o latejar das pálpebras num desacordo da janela. toda ela o enquadramento que se diz queda. no mesmo tom dos degraus. mas a recusa da queda também se impõe no corpo. a vertigem. negação dela mesma nos viajantes do espaço. escada. da fuga um dito outro que se repete na condição.degrau. escolha árdua a inventar mais um percurso da tripartição. fuga que tanto pode ser subida quanto descida. repetição mágica investida de silêncio e surpresa na sobrevivência de um tanto de escape. ou não mais a escada. mas tudo do que ela propõe como o sentido da fuga. cada passo é sempre um sumir. ex-queda. ex-cada.


esboço da tua partida. 
de que valia a espera num tempo sufocado. haviam os lugares edificados da razão. a subida. a descida. a fuga e seus métodos perfeitos. mas o que dizer de um disparo para o fundo do vazio. “um disparo para o coração”. deixando para trás o desmonte da cena. a quietude. os traços. os vestígios ali jogados no chão do mundo. teu mundo. meu mundo. nossos. deles. delas. quem inventou essa forma de dizer que o inté é sóbrio? quem inventou esse ímpeto que corta a palavra ao meio e some da vista? e reinventa gestos bruscos? e violências novas? o esboço é apenas para dizer que o que virá nunca é possível saber. mesmo a mais fina e bem intencionada intuição. a saída é sempre a pulsação de um estado de não.mais sofrer. ou mesmo o desatino que impõe o tchau. o adeus. o foda-se.


joguei no fogo. teus óculos. teus livros e teu impregnante perfume. 
e que venha o fogo a consumir o que dos viajantes são marcas de uma identidade fluida. e que venha o fogo a marcar a carne no desavisado das horas. fogo a derreter as matérias que compõem a gramática da relação. olhos numa difusa visão que já não se sustenta mais em função da perda do objeto. objeto ele todo definido em cinza. texturas e nuanças de tons que somem no acizentado dos dias. e páginas do tempo.livro que se dão em nada. palavras queimadas do que foram as palavras. aquelas que diziam tudo o que compunha o desejo. o acaso. o afeto. ou o raso das mesmas palavras a imantar as cenas que ardiam em chama outra do que fora o fim das páginas do livro de histórias. e o perfume que se desprendia dos acontecimentos apenas davam uma idéia vaga do que era a densidade dos sentimentos. e do que ora se evidenciava pelo filtro de narinas estranhas. nada mais que dizer. apenas do estalido das chamas a consumir os restos. eis o que tudo vale o fogo.


escreve aí nosso fim. 
sim porque é do fim que se trata este enredo tão breve. é do fim que as batidas da máquina de escrever falam. seus disparos que antecipam o olhar frio e triste que dobra a esquina e reinventa trajetos. escreve. escreve para não mais esquecer dos dias em que tudo era claro e belo. porque é de beleza que os fins falam. e a recorrência a esses temas finais são tão mais densos que só a escritura pode domar. ou revelar sua parte oculta porque o que se vê como a objetualidade dos fatos sempre escondem as camadas mais fundamentais. camadas que só um tempo longo de escuta dará a condição do entendimento e da compreensão. escreve. escreve. para que o que podia ser abismo abriu.se como a covardia da evitabilidade da beleza amputada num corte brusco e frio dos medos do que podia ser verdadeiro e que reverteu.se em nada. escreve. escreve aí nosso fim como a dizer dos passos leves do felino em sua negritude abissal a evocar o outro felino que na margem oculta do desejo se reinventa. escreve. escreve com máquina de moer o coração quente que habita o tempo dos mais livres sentidos. escreve. escreve nosso fim para nunca mais.


arranjou coisa melhor pra fazer.
porque do fim que se instala na margem oculta dos dias o olhar persegue o tempo das cópulas. o vadio dos gestos a armar coitos outros do que quer as energias múltiplas numa sua destituição do que poderia ser leveza. inevitabilidade do cio a desferir cortes no corpo torto. fricção dos órgãos até a explosão de todos os sentidos. sal e fel. aço e giz. e o desmedido dos atos numa densidade imagética. densidade dos animais no tempo do acasalamento. nada que as pulsações do corpo não sejam capazes de engendrar. energias da sobrevivência no campo aberto do desejo. e o jorrar das cascatas na distância de um outro horizonte assim sem nada mais a dizer. adeus.

1 Do conto Dancing In The Dark. In: PINHEIRO, Luizan. Adolescendo Solar (Contos). Belém: Cromos, 2009.
p. 79.
2 Professor da Faculdade de Artes Visuais – FAV do Instituto de Ciências da Arte – ICA da UFPA, e do
Programa de Pós-Gaduação em Artes – PPGARTES/ICA. Doutor em Artes Visuais (História e Crítica de
Arte) pela UFRJ. 

Um comentário:

Anônimo disse...

"Pontas dos dedos são ferramentas que se especializaram em 'tatear' quando não se consegue enxergar. Mas nos novos tempos da imagem técnica, elas ensejaram a proliferação das teclas e botões, que fizeram a motricidade regredir ao seu grau mínimo de complexidade, produzindo um tatear que não requer sutileza na recepção de sinais nem diferenciação de texturas e tatilidades: apenas apertar botões e teclas."

Introdução - O universo das imagens técnicas - elogio da superficialidade. VILÉM FLUSSER